Travessia

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A brisa da noite chegou lhe tomando os cabelos, que voavam acariciando o rosto, ganhando vida nas costas, levantando ar. Do outro lado, pequenas luzes alcançavam a cidade. Ouvia-se o soar da navegação, cujo nome em letras garrafais, Morena, estendia-se em seu costado, avisando da partida breve para um caminho que não tomava meia hora de ir e vir.

Naquele lugar o cheiro de diesel, de brisa, de rio.

Cecília tinha, à hora, o olhar injetado. Sobre o manto verde de sua íris, o vermelho alcançava a orbe. Não chorava, não ainda. Tinha na tez de fadiga uma esperança tênue que se esvaia a cada ir e voltar de Morena. Diferentes pernas subiam e desciam. Todas as pernas, menos as esperadas.

Seu olhar se desgrudou da navegação branca que percorria, em passear vagaroso, de um lado a outro das duas cidades e se voltou para o rio. À sua frente, as águas caudalosas e escuras se remexiam antevendo chuva ou frio. Não conseguiu conter o arrepio que lhe tomou o corpo quando mais uma brisa alcançou a pele. Tombou um pouco ao chão, cansada da força que fizera no decorrer do dia. Nesse ímpeto de queda, passeou os dedos naquelas águas, desenhando formas, construindo sorrisos, antecipando sonhos.

Quanta vida tivera à margem do velho Chico não poderia contar, mas antevia que ali choraria o pranto de uma de suas maiores dores – talvez a maior no ápice dos seus dezessete anos. Aos seus olhos de menina, caso concretizado o que o resto de esperança temia em manter morno, seria aquela a maior dor de sua vida, seja de juventude ou velhice.

Observou nova aproximação de Morena que trazia em seu interior diferentes rostos. Seu olhar se renovou de esperança enquanto contava, um a um, os passageiros que desciam. Nada. Gemeu.

O soar do sino da catedral anunciando o prenuncio da missa daquela noite retirou Cecília do torpor. À margem do rio São Francisco podia ver, do outro lado, a cidade que crescia a olhos vivos e que, apesar de não ser naturalmente sua, ela amava.  Petrolina. Suspirou em desespero contido. As lágrimas que segurara durante todo o dia agora se esvaiam de seus olhos percorrendo a face.

Mais uma vez seus joelhos cederam. O grito saiu turvo de sua garganta quando explodiram os primeiros fogos de artifícios. Anunciavam a festa de logo mais.

Juazeiro nem te lembras desta tarde – murmurou, enquanto, com os olhos ainda nublados, ousava fixa-los na outra margem como se, além da escuridão da distância, da ausência de iluminação precisa, pudesse transformar o verde que os preenchiam em águia.

Em seu coração sabia que já acontecia.

Tivera um dia inteiro para retornar aos seus braços, desde que os deixara, naquela madrugada, quentes, úmidos, precisados.

Quantas promessas vãs foram jorradas em seus ouvidos quando a manhã ainda sequer havia se pintado? Não poderia precisar. Todavia, a mais importante ainda retumbava, como se houvesse acabado de ser exposta.

“Antes de anoitecer estarei de volta. Me espere às cinco na nossa margem”.

Vira em seu olhar tamanha paixão e verdade que, agora, à certeza da mentira, seu corpo doía como esmagado.

Não havia comido, mas não sentia fome.

Passara o dia àquela margem, contando as horas, o ir e vir de Morena, os rostos, em sua maioria conhecidos, que desciam e subiam da embarcação. Vira a vida começar à margem do rio, vira-a também morrer.

As mãos espalmadas à terra fofa a apertaram quando mais uma sequencia de fogos preencheu o ar.

Petrolina nem chegaste a perceber – dessa vez o suspiro saiu desesperador, arranhando a garganta, preenchendo o espaço vazio.

Estava acontecendo naquela hora. Ela podia sentir o próprio peito que batia descompassado. Se haveria um momento da perda, sem dúvida era aquele.

“E se eu não tivesse acreditado?”, pensou angustiada por um instante. Sabia que, acaso o último olhar lançado não tivesse sido pontuado pela certeza, não seria a espera que a aguardaria. Cecília estaria do outro lado, lutando por seu amor, esbravejando a sua dor, tentando fazer daqueles fatos que sucederam o último ano de namoro uma verdade a seu ver incontestável: pertencimento.

Tentou não pensar, mas agora os fogos explodiam em profusão. O choro que já vertia em sua face saiu ainda mais dolorido se confundindo com os gritos de felicidade que ultrapassavam a nave da igreja, ganhavam a praça, o porto, a margem e chegavam a Juazeiro, aos seus ouvidos. Sabia que era o amor e a dor lhe pregando peça e à sua frente podia até mesmo vislumbrar a quem pertencia.

Trocaram, pessoa e miragem, um sorriso triste.

A escolha fora feita, enquanto a imagem fatalmente desaparecia de seus olhos, ainda que nunca de seu coração.

Foi tirando lentamente as peças de roupa que se grudavam amarrotadas em seu corpo. A saia curta desceu escorregando pelas coxas bem feitas. A camiseta saiu limpando os rastros de tristeza. Foram-se aquelas íntimas.

Nua, ela sentiu mais uma vez o vento daquela noite passear em seu corpo. Num último suspiro, jogou-se nas águas negras. Limpar-se das ilusões. Era isso.

No fim daquela noite, enquanto olhava para o céu pontilhado de estrelas, estando imersa nas águas do velho Chico, sem medo ou pudor de ser vista, retumbava em seus ouvidos, na sua alma, no seu coração: “e eu sou só, eu só, eu só, eu”.

 

 

Dorme o sol à flor do chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume
Dorme ponte, pernambuco, rio, bahia
Só vigia um ponto negro: o meu ciúme

 

Geraldo Azevedo, O ciúme